domingo, 14 de agosto de 2011

Uma Mulher Gorda e Nua

link original (Entrevista com Fernanda Magalhães na Gazeta do Povo)

Fernanda sempre foi gorda. Padeceu os infernos por causa disso, até retratar o próprio corpo, em meados da década de 1990, produzindo o que já pode ser chamado de um clássico das artes visuais no Brasil – a série Representação da Mulher Gorda e Nua na Fotografia.
Prova disso é que mesmo sendo dona de um respeitável catálogo artístico, continua sendo convidada a expor e a falar sobre as imagens que a apresentaram ao circuito de arte, ganhando mostras em incontáveis pontos do planeta, de Cuba à Finlândia. Em outubro deste ano, por exemplo, “a mulher gorda” será mostrada no respeitável Maison Européenne de la Photografie, em Paris. “Mas continuo uma maldita. Ninguém quer ter uma imagem dessas em cima do sofá”, brinca a artista.
Magalhães vive numa pequena chácara nos arredores da cidade onde nasceu. É professora doutora da Universidade Estadual de Londrina e se integra ao rol de pesquisadores brasileiros que fazem dos estudos de gênero um sopro de vida em meio ao mofo acadêmico.
Na entrevista que segue, dada em sua casa, falou do pai, o ativista cultural Vilela, sua maior influência; de câncer; cirurgia bariátrica e, claro, de como a menina que corria dos colegas que a chamavam de “baleia” fez de um trauma infantil um contundente discurso libertário. “A gordura é transgressora”, provoca.
Você sempre foi gorda?
Redondinha. Arredondada. Nada muito absurdo, assim como minha família inteira, do lado de pai e do lado de mãe.
E na escola?
Na escola tinha essa coisa de chamar de gorda baleia, saco de areia. Corriam atrás de mim nas ruas...
Nas ruas?
Sim, naquela brincadeira de bola queimada. Gritavam “pega a baleia, pega o saco de areia...” Era bullying, né, mas naquela época não tinha esse nome.
Como você reagia?
Meu mecanismo era não ligar. Eu sofria exclusão, horrores. Muitas meninas não andavam comigo. Com o tempo, fiquei passiva. Cheguei ao extremo de nem perceber o que acontecia. Mais tarde, explodiu.
Quando foi?
Em 1993, fui morar no Rio de Janeiro. Lá comecei a recuperar essas dores...
Numa temporada de estudos, é isso...
Sim. Àquela altura, eu já fotografava pessoas nuas. Mas no Rio havia aquele culto às formas, à gatinha. Aquilo me pegava. Até que num curso, em Niterói, o Pedro Vasques pediu que fizéssemos um ensaio fotográfico bem pessoal, um autorretrato. Foi durante esse exercício que eu entendi o que acontecia comigo...
E o que acontecia?
Eu tinha vergonha daquele corpo. Aquele corpo não podia ser mostrado. Era um assunto tabu. Falar de gordura significava falar de dieta. O primeiro autorretrato foi uma forma de gritar: “Oi, eu existo. Essa sou eu. Sou assim. E aí? Tenho de ser excluída da sociedade porque tenho essa forma?”
Fale sobre o autorretrato...
Foi um processo lento. Eu recortava pedaços de fotos minhas, gorda e nua, tirando as partes que me incomodavam, aquelas dobras todas do corpo. E guardava os fragmentos numa caixinha. Sem me dar conta, eu estava fazendo uma plástica na imagem. Depois, fui juntando os pedaços. A cada vez que eu colava e me via, bom... não era fácil encarar. Esse trabalho acabou levando à série “Representação de Mulher Gorda Nua na Fotografia”.
... um trabalho que lançou você no circuito das artes. Foi bom?
Mulher gorda e nua... houve uma curiosidade, claro. Mas meu circuito era o alternativo. Não tenho galeria em São Paulo, não vendo trabalho. Quem é que vai querer colocar uma foto de uma mulher nua, gorda, em cima do sofá? Ninguém. Já participei do Panorama da Arte Brasileira, uma exposição importante, mas nunca estive numa Bienal. Vou expor em Paris em outubro, mas acho que de alguma forma continuo maldita.
Fernanda, mas o que não lhe falta é reconhecimento...
Tenho tido um retorno enorme. De repente, dizem que o que faço é inovador. O autorretrato da mulher gorda nua é visto como catártico. As pessoas finalmente me aceitam como sou. Tem horas que fico me perguntando como persisti tanto.
As fotos da Fernanda gorda e nua não acabaram reduzindo sua produção a um tema?
O tema não me prendeu, me libertou. E libertou muita gente. Minha produção toca feridas. A crítica de arte pode até não gostar do que faço. Já não posso dizer o mesmo das pessoas que vão às exposições. Muitas mulheres me agradecem, dizem que passaram a se dar o direito de pôr um biquíni na piscina. Além do mais, extrapolei a obesidade e passei a pensar na mulher, em gênero, em diversidade. A obesidade acabou se tornando para mim uma questão política. Fiz mestrado e doutorado no assunto. Me interessa saber por que estamos correndo atrás de um corpo idealizado. Tem a ver com controle e poder. Todos sofrem com essa ditadura. A magra e eu.
Até as magras sofrem...
Sofrem. O corpo perfeito, não existe. Aquele corpo que a gente considera na medida já passou, sei lá, por 19 cirurgias. Nos quase 20 anos em que lido com isso acabei fazendo muita conferência. Ouço depoimentos pesados. Há meninas lindas com compulsão por cirurgias. Nunca se sentem no padrão ditado pela publicidade e pela moda. Correm atrás de um corpo cada vez mais plástico e infantil.
Você já pensou em reduzir o estômago?
Não posso não pensar. Minha postura é a de não ser fechada. Mas nunca vou me submeter à redução do estômago. Para mim não é a solução, porque eu não preciso de solução. Meu corpo é esse. Os médicos podem dizer que tenho corpo fora do padrão. Bom, uma multidão está fora do padrão, né.
Em que você é contra a cirurgia?
Não sou contra qualquer tipo de cirurgia. Sou contra o excesso de consumo. Contra a manipulação. Contra a ilusão que essa intervenção cria. Tenho visto o descontentamento de muita gente que fez redução de estômago. Já ouvi coisas do gênero: “Eu odeio meu corpo. Não ficou como eu queria...” Conheço uma ou outra pessoa que se deu muito bem com a cirurgia. Uma amiga recuperou a autoestima. É uma luta dela. É a minha também. Casos e casos.
Os médicos não devem morrer de amores por você...
Recebi muitas ameaças de endócrinos. Eles me mandavam recados, dizendo: “Você está fazendo um desfavor à sociedade.”
Você se sente bonita?
Tem dias em que me arrumo, me sinto linda, como qualquer ser humano. Noutros, me sinto péssima. Mas a questão não é essa. A questão é que entendi não adiantar de nada ficar buscando um corpo idealizado. Não quer dizer que eu não ache importante se cuidar. Faço caminhada, me alimento naturalmente, há anos não tomo refrigerantes. Gostaria de ficar com uns quilos a menos. Afinal, adoro dançar e criar um visual diferente.
A quem você deve a pessoa que é?
Meu pai, Antônio Vilela de Magalhães, o Vilela, foi meu primeiro professor. Quanto eu tinha 6 anos, ele me levou para conhecer um laboratório fotográfico. Me encantei. Disse que quando crescesse ia ser fotógrafa e ganhei uma Polaroid enorme. E tinha o cinema. Lembro que ele fazia brincadeiras com filmagens, numa super-8. Fazíamos experiências com a voz num gravador de rolo. Em casa sempre foi essa animação.
Como era seu pai?
Ele se apresentava como jornalista, trabalhou na Editora Melhoramentos, tinha uma ligação muito forte com o livro. Chegou a ter uma livraria. Cresci no meio de uma tipografia. Mas digo que ele era um artista. Amava todas as artes. Fotografava. Fazia cinema. Fazia teatro e montou o primeiro grupo de Londrina. Digo que sempre foi múltiplo. Nele, isso era natural.
Dois trabalhos seus com lençóis – Impressão da Memória e o Corpo em Reconstrução – teriam nascido de uma situação com seu pai. Como foi isso?
Ele trabalhava três turnos. Quando chegava em casa, queríamos que lesse gibi para nós, mas estava cansado. Como era uma pessoa bem divertida, dava caneta para a gente desenhar nas costas dele, que eram largas. A brincadeira funcionava como uma massagem e meu pai cochilava. Como suava muito, e dormia sem camisa, os desenhos ficavam impressos no lençol. Contei essa história para a poeta e jornalista Karen Debértolis, que enxergou nessa passagem minha relação com o corpo. Daí surgiu a ideia de imprimir nos lençóis, com fotos do corpo desenhado.
E sua mãe? [risos]
Tadinha, minha mãe ficou para lá na conversa. Mas ela foi fundamental. A pesquisadora Margareth Rago sempre se disse intrigada com a minha produção. Até conhecer minha mãe e me ajudar a entender a presença dela no meu trabalho. O pai era um sonhador. Ela tem o pé no chão, é crítica, persistente, incansável. Há 20 anos vai na prefeitura brigar para não que não cortem as perobas, discute com as caras. Fala o que pensa.
Podemos falar do câncer?
Eu tive um câncer no útero em 2003. Provei o caos da doença. Precisava de alguém até para me dar banho. Tinha de contar com minha mãe, com a empregada, com o Plantão Sorriso, com a tia que foi no hospital me ajudar a fazer o primeiro pum [risos]. Difícil falar disso. Mas foi o que me deu força para lutar. Me senti amada. E acho que é disso que meu trabalho fala. É precisa do afeto para construir um corpo coletivo. Cada um me doou uma parte do seu corpo – um braço, uma perna...
E o câncer virou performance...
A experiência me levou a outro trabalho, que é “O Corpo em Reconstrução”. Nele desenvolvi a ideia de que precisamos do outro para nos refazer. Passei a convidar pessoas para participar de performances públicas. Cada um imprime suas lembranças num grande lençol. Tenho feito sem parar, em várias cidades.
Por que você permaneceu em Londrina?
Meu pai morreu cedo. A gente teve de ir à luta. E aqui eu tinha meu espaço. Além do mais, todas as vezes em que fui embora não deu certo. Ia e tinha de voltar. Hoje, estar no interior é inclusive favorável. Na última década, desenvolveu-se a ideia de que as coisas não acontecem só nos grandes centros.
Sua casa é linda...
Pois é, minha família nunca morou nessa chácara. Em 2000, decidi me mudar. Tinha motivos: passei minha infância vindo a esse lugar. Era longe da cidade. Para chegar, tinha de atravessar no meio dos eucaliptos, descer a pé. Quando meu pai morreu, resolvi reformar o barracão onde ele havia montado uma tipografia e fiz um ateliê.
Esse lugar é seu espelho?
Sempre digo que essa casa é meu maior trabalho.

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